O caminho das pedras

love hate

Há alguns dias, a Glória Perez me disse uma daquelas coisas que as pessoas dizem sem saber que vão provocar uma revelação, uma epifania:

– Prepare-se para o ódio.

Uma frase dita em meio a outras, entre uma fatia de pizza e um gole de coca cola (minha recaída depois de quase quatro anos longe dos refrigerantes). Uma frase sem pretensão. Sem vocação para ser premonitória. Algo como quem diz “coma antes que esfrie”.

É que preparamo-nos para ser amados. Ajeitamos o cabelo, o colarinho. Puxamos a saia um pouco mais para baixo. Um pouco mais para cima. Dizemos “eu te amo” na certeza do “eu também”. Esperamos o “eu te amo” para gaguejar alguma coisa – omitindo o verbo indizível, o que diz muito mais do que se o disséssemos.  Entregamos o presente e procuramos o brilho nos olhos de quem abre o embrulho. Revisamos o texto, trocando uma palavra que não muda nada, mas que muda tudo porque deixa claro para nós mesmos que todo cuidado é pouco quando se deseja ser amado.

Aprontamo-nos para o amor de quem amamos, para o amor de quem desconhecemos, para o amor de quem sequer sabemos se existe, até para o de quem nunca saberá que existimos. E nos esquecemos de que há uma fração da humanidade que é talhada para o ódio. E com a qual, fatalmente, haveremos de nos cruzar – os expectantes do amor, os caudatários do ódio.

“Prepare-se para o ódio” é mais ou menos a avó que nos pede que levemos agasalho (prepare-se para o frio, o sereno). O pai que nos lembra para ficar de olho na bagagem, não perder a baldeação, não aceitar nada de estranhos. A que nos sussurra “ligue quando chegar” como alerta velado de que há perigo na esquina. O que nos abraça e murmura, embaraçado, “te cuida, meu”, porque haverá momentos em que não poderá estar do lado, para nos cuidar.

Recebemos o tempo todo milhares de manifestações de amor – na forma de sorriso, bom dia, por favor, melhoras, coma antes que esfrie. Não vêm necessariamente de quem nos ame, mas, com muito mais frequência, de quem projeta em nós sua necessidade de amor, sob o manto de civilidade.

E vivemos, sem nos dar conta, a ilusão de que o ódio só existirá se o provocarmos. Mas ele independe de nós. Tem vida própria. Nós apenas nos prestamos, com maior ou menor eficiência, a ser alvo desse ódio. Há quem chame de inveja, de ciúme, despeito, ressentimento; não importa. O universo feito de matéria e antimatéria, amor e ódio. Tudo o mais é variação em torno desses temas.

Nem todo amor que recebemos se destina a nós: apenas estávamos lá, na hora certa, pare recebê-lo. E agradecemos (por vezes, até retribuímos!) como se tivéssemos algum mérito pelo amor alheio. Com o ódio, que é a contrapartida do amor, não haveria de ser diferente.

Ele virá. Queiramos ou não. Virá porque existe, não porque existimos. Apenas estaremos lá, na hora certa-errada, em lugar visível – ou, ainda que invisíveis, onde o acaso possa nos encontrar. Virá como a bala perdida – não somos o seu destinatário, não temos qualquer participação na cena, somos alheios à motivação.

Mas temos que estar preparados para ele, como estamos para o amor. Nem um nem outro nos dizem respeito (o amor e o ódio pertencem a quem ama e a quem odeia). Só nos deixamos, por vaidade, ser depositários do amor que não nos pertence – e, por estupidez, nos indignamos com o ódio que tampouco nos diz respeito.

– Prepare-se para o ódio.

A frase tinha tudo para ser banal. Nada no seu tom denunciava que fosse provocar uma revolução interna, um entendimento súbito. Uma compreensão de que, se queremos ser objeto de amor (e queremos), temos que aceitar sua contrapartida. Que o amor tem seu preço.

Dias depois de ouvir essa frase, uma mulher – de quem nunca tinha ouvido falar, cujo rosto nunca vi, cujo nome não diz nada – desejou que eu morresse do coração.  Em meio a uma avalanche de gente que insiste que eu tome água (ainda não estou tomando…), há uma pessoa (uma, entre milhares) que quer que eu morra.

Não porque eu lhe tenha feito mal, lhe ameace a existência ou seja indigno de viver. Para ela, eu sou “de esquerda” – e isso lhe faz mal. Ela preferia que eu não fosse – e pouco importa que eu não seja – e isso ameaça sua existência (ou a da sua crença no bolsonarismo). Por isso, é melhor que o meu coração pare de vez – o que morrerá será o Mal que represento, não eu.

Por que mil declarações de amor não provocaram a mesma reação que uma de ódio? O ódio não é assim tão maior, tão mais potente. Se o amor nos soa natural (“melhoras!”), por que nos haveria de soar estranho o ódio (“morra!”). São cara e coroa, o trem que chega e o trem da partida. É muita ingenuidade (por pouco não digo estupidez) achar que um existirá sem o outro.

As pessoas não se lembram de tudo que dizem, nem sabem das consequências das suas palavras. Mas nós sabemos quando ouvimos o que temos que ouvir.

Tenho que me preparar para o ódio, assim como venho me preparando para o amor. E vou comer – a pizza, o amor – antes que esfriem.

7 comentários em “O caminho das pedras

  1. Quem introduziu esse sentimento de ódio na política brasileira foi a Marilena Chauí, naquele vídeo inacreditável em que ela fica gritando que “odeia a classe média”, sob o olhar e o sorriso benevolentes do Lula e do Amir Sader…
    Depois foram os petistas se dizendo vítimas do “ódio”, quando na verdade eram objeto do asco, do nojo, da repulsa da maior parte da sociedade – mas se dizer “odiado” é mais legal do que se reconhecer rejeitado.

    Curtir

  2. Gosto muito de suas crônicas. Sempre que possível, eu as repasso. E assim você tem mais leitores. E isso é bom para todos, até para o mensageiro de bons textos.

    Curtir

  3. Sua crônica sempre ultrapassando qualquer expectativa. Sensacional! Me fez pensar…Creio que tanto o ódio como o amor são sintomas de uma excrescência moral nascida do medo pela sobrevivência ameaçada, seja psíquica ou física. Primordialmente precisávamos de sexo, alimento, repouso e cooperação para sobrevivermos. Agora, precisamos seduzir para obtermos a sobrevivência, nada é natural mais. Daí o amor e ódio que permeiam a vida das pessoas, quanto mais primitivas permanecem em um meio social complexo mais imbuídas de paixões.

    Curtir

Deixe um comentário